Alocação de recursos em saúde durante a pandemia da COVID-19: uma perspectiva ética cristã

Este é um breve resumo de um documento informativo – leia a versão completa [1] para uma consideração mais minuciosa dos assuntos.

Como médicos do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS), um sistema de saúde com bons recursos, abordamos o assunto do racionamento de cuidados em saúde com um grau de humildade. No entanto, à medida que a pandemia da COVID-19 avança, a alocação de recursos está se tornando cada vez mais desafiadora para todas as nações. Buscamos considerar como, enquanto cristãos, podemos começar a enfrentar alguns dos difíceis desafios éticos enfrentados por nossos sistemas de saúde.

Quando perguntado, qual é o maior mandamento:

Respondeu Jesus:  (Mateus 22:37-39 – NVI) ’Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’. (Mateus 22:37-39 NVI)

Amar nosso próximo pode parecer bem diferente de uma pessoa para outra, com base na necessidade clínica e no estado de saúde. No entanto, o amor deve permanecer no centro de todas as nossas decisões.

A demanda por recursos intensivos para salvar vidas de pacientes seriamente doentes está aumentando rapidamente. O gerenciamento dessa demanda envolve medidas como testes, rastreamento de contatos, quarentena e distanciamento social. Existem muitos exemplos nas Escrituras da ampliação do suprimento de recursos em tempos de desafio por meio da fé e da oração [2], recrutando mais obreiros [3], treinando e liberando novos líderes [4].

Apesar dos esforços para aumentar a capacidade, ainda estamos enfrentando a possibilidade de escassez de recursos. Usando os quatro pilares da ética médica de Beauchamp e Childress [5] como estrutura, vamos considerar uma resposta cristã.

Respeito pela autonomia do paciente

Se um paciente tem capacidade e recusa a progressão do tratamento, isso não pode ser imposto a ele, mesmo que isso pareça imprudente. [6] Da mesma forma, se um paciente insistir em que ele deve ser encaminhado para uma escalada completa do tratamento, ainda pode ser clinicamente apropriado suspender certos tratamentos que dificilmente serão benéficos [7] ou causarão danos. Alguns pacientes, particularmente aqueles frágeis e idosos, podem optar por ficar em casa (idealmente com o apoio de cuidados paliativos de alta qualidade), para permitir uma morte mais natural na companhia daqueles a quem amam.

Beneficência – maximizando o benefício com uma boa administração de recursos

Como profissionais de saúde cristãos, somos chamados a ser bons administradores de nossos recursos [8]. No entanto, o utilitarismo [9] – ‘o maior bem para o maior número’ – frequentemente nos deixa profundamente desconfortáveis. A crise da COVID-19 é um exemplo de uma extrema circunstância, com uma necessidade avassaladora e recursos limitados, onde uma suave ética utilitarista pode ser justificada.

Onde os recursos são insuficientes, parece razoável priorizar o acesso a intervenções intensivas para aqueles com maior probabilidade de benefício. No entanto, a aplicação desse princípio é desafiadora, pois nosso conhecimento sobre a COVID-19 é fragmentado, mas em expansão.

A prioridade essencial na decisão de quem deve receber tratamento durante esta crise é: o quão provável é que determinada pessoa sobreviva e qual a velocidade do benefício esperado. Os fatores relevantes incluem:

  • Gravidade da doença aguda
  • Presença e gravidade da comorbidade
  • Fragilidade ou, quando clinicamente relevante, idade [10]

Devemos reconhecer que o racionamento no contexto de uma pandemia causará dificuldade moral às equipes de saúde e devemos procurar modelar o que isso significa a fim de promover o bem-estar em nossos colegas, bem como em nossos pacientes.

A Palavra de Deus repetidamente nos ordena a ter compaixão, assim como nosso Pai Celestial é compassivo:

Quanto ao mais, tenham todos o mesmo modo de pensar, sejam compassivos, amem-se fraternalmente, sejam misericordiosos e humildes. (1 Pedro 3:8 – NVI)

Apesar do aumento do estresse e da pressão neste momento, o mandamento permanece. Devemos buscar a compaixão e o conforto do Senhor, para que possamos transmitir isso às pessoas ao nosso redor. [11]

Justiça distributiva – garantindo imparcialidade, igualdade e justiça

Como cristãos, afirmamos que todas as pessoas têm valor e significado intrínsecos, sendo feitas à própria imagem de Deus [12] e são igualmente dignas de cuidado. O fato de todas as pessoas serem iguais não significa que todas devem receber os mesmos tratamentos.

No entanto, a justiça se torna corrompida se discrimina a favor de algumas vidas em detrimento de outras. Ao longo das Escrituras, vemos que todas as pessoas têm igual valor, e não devemos favorecer os indivíduos com base em seu status social [13], financeiro [14], ou outro status – nosso Deus abomina o favoritismo e ama a imparcialidade [15]. De fato, somos chamados a ser defensores dos vulneráveis [16].

Também devemos considerar o acesso de pacientes não-COVID-19 a escassos recursos de saúde. Como cuidamos daqueles que necessitam de outros tratamentos urgentes quando nossos recursos hospitalares estão quase esgotados? Estes são desafios muito difíceis e precisamos orar por sabedoria.

Não maleficência – minimização de danos

Durante esta crise da COVID-19, as decisões em torno da retirada do tratamento (como ventilação invasiva) podem, por necessidade, ocorrer mais cedo do que aconteceriam em circunstâncias normais e com base nos recursos. A retirada do tratamento não é moralmente equivalente ao assassinato intencional [7]. Nessas circunstâncias, a morte já está próxima, e permitir que a morte ocorra não é o mesmo que causar a morte.

No entanto, esses tipos de decisões existencialmente onerosas, além de terem possíveis desdobramentos legais [17], serão emocionalmente, moralmente e espiritualmente angustiantes para os clínicos que precisam tomá-las. Decisões complexas em torno do racionamento podem ser tomadas de uma melhor forma em discussões com uma segunda opinião e até mesmo com um comitê [18].

Conclusão

Esta pandemia da COVID-19 nos fornece um forte chamado para orar pelos clínicos, gestores, políticos e todos os envolvidos na resposta. Devemos orar por novas soluções, inovações e tecnologias para apoiar a prestação de cuidados de saúde e o fim desta crise desafiadora.

Por fim, devemos buscar sabedoria do Senhor [19]. Nós, nossas famílias e nossa família mais ampla da Igreja em todo o mundo, oramos por você e por outros profissionais de saúde ao redor do mundo. Devemos nos esforçar para sermos bons administradores, ao mesmo tempo em que pressionamos por recursos suficientes. Devemos nos empenhar para afirmar que a compaixão é fundamental, que todas as pessoas são iguais e todas são merecedoras de cuidado.


Dr. Melody Redman – Trainee Pediátrico e Bolsista de Liderança, Sheffield, Reino Unido

Dr. James Haslam – Consultor em Anestesia e Medicina Intensiva, Salisbury, Reino Unido

Tradução: Médicos de Cristo

Referências

1. http://admin.cmf.org.uk/pdf/When_demand_outstrips_supply-COVID19_briefing_paper.pdf

2. Mateus 14:19; 2 Reis 4:1-7

3. Mateus 9:37-38

4. Números 11:16-17; Lucas 10:1

5. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios de ética biomédica. 5ª edição. Nova York: Oxford University Press, 2001

6. Tratamento e cuidados no final da vida: boas práticas na tomada de decisões. General Medical Council, julho de 2010. bit.ly/2UG7g7C [acessado em 5 de abril de 2020]

7. Haslam J. Retirada e retenção do tratamento médico. CMF File 62, 2017. cmf.li/2HUkFCG [acessado em 5 de abril de 2020]

8. Mateus 25: 14-30 15

9. Bentham J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação (1789). Garden City, NJ: Doubleday, 1961

10. Coulson-Smith P, Lucassen A. Clinical ethics guidance during the COVID-19 pandemic. University Hospital Southampton (UHS) Clinical Ethics Committee, 30th March 2020 (unpublished)

11. 2 Coríntios 1:3-4

12. Gênesis 1:27

13. Gálatas 3:28

14. Tiago 2:1-9

15. Provérbios 24:23; Romanos 2:11; Lucas 14:13-14

16. Provérbios 31:8-9

17. Statement on legal liabilities of clinicians as individuals during Coronavirus Pandemic. Intensive Care Society. bit.ly/2QYRQJG [acessado em 5 de abril de 2020]

18. Truog RD, et al. The toughest triage – allocating ventilators in a pandemic. NEJM, 2020. DOI:10.1056/NEJMp2005689

19. Tiago 1: 5

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