A capacidade de diagnóstico em larga escala é a chave para o controle da epidemia de coronavírus – a lição clara do Leste Asiático
Por Peter Saunders | 18 de março de 2020 |
Quantas pessoas morrerão no Reino Unido como resultado da pandemia do COVID-19? Segundo os cientistas, serão entre 20.000 e 500.000, dependendo muito de como reagimos.
Uma equipe do Imperial College produziu um artigo1 esta semana que levou o governo a adotar uma série de novas medidas para impedir a propagação da doença.
Se não fizermos nada2 e apenas deixarmos o vírus passar pela população sem impedimentos – na esperança de produzir a chamada “imunidade ao rebanho” – 81% das pessoas seriam infectadas e 510.000 morreriam de coronavírus até agosto.
Se adotarmos uma estratégia de mitigação2 – tentando retardar sua disseminação para evitar um pico maciço de casos que sobrecarregaria muito o Sistema Público de Saúde inglês (National Health Service- NSH) – podemos esperar 250.000 mortes.
Mas uma abordagem de supressão2 – rompendo as cadeias de transmissão para impedir a epidemia – reduziria o total de mortes para milhares ou dezenas de milhares.
O governo concluiu agora que a supressão é a única linha viável de abordagem. Seu principal consultor científico, Patrick Vallance, disse a um comitê de legisladores nesta semana que 20.000 mortes3 seriam “um bom resultado em termos de onde esperamos chegar com esse surto”.
Por que a China fez muito melhor do que nós?
Mas isso levanta uma enorme questão. Se 20.000 mortes são um ‘bom resultado’ e o melhor que esperamos alcançar, então por que houve apenas 3.000 mortes na China, onde o surto realmente começou?
Em termos populacionais (o Reino Unido tem 67 milhões de habitantes e a China 1 bilhão e 435 milhões), o número de mortes equivalentes no Reino Unido ao da China seria de apenas 140 se tivéssemos lidado com o mesmo sucesso que eles. 20.000 é mais de 140 vezes esse valor.
Então, o que os chineses fizeram de diferente? E o que, por implicação, deixamos de fazer?
O controle da disseminação do coronavírus na China é notável, mas real. Os números de hoje4 mostram um total de 80.000 casos, mas apenas 10 a 20 novos casos por dia. Ainda existem 10 a 20 mortes por dia pelo vírus na China, mas estas são, quase todas, de pessoas que foram infectadas há semanas. As coisas caíram maciçamente.
Mas a China também conseguiu essa queda muito mais rapidamente do que outros países. 80.000 casos na China totalizam 56 casos por milhão de habitantes, o que é uma melhor medida para avaliar quanto o vírus afetou um determinado país.
Em contraste, a Itália, com 31.000 casos até o momento, possui 521 casos por milhão, quase dez vezes o número da China.
De fato, hoje, em 18 de março (e esses números obviamente aumentam diariamente), existem 32 países ou territórios4 com uma densidade de casos maior do que a China. Alguns destes são pequenos estados populacionais como Luxemburgo, Andorra e San Marinho, mas outros incluem Espanha, Alemanha, França, Suíça, Holanda, Noruega, Áustria, Bélgica e Dinamarca.
As duas anomalias são os EUA e o Reino Unido – hoje com 20 e 29 casos por milhão de habitantes, respectivamente – mas sabemos pelo número de mortes nesses dois países que o número real de pessoas infectadas é muito maior do que isso. Vallance disse ontem3 que um número atual de “estimativa razoável” para o Reino Unido era de 55.000 casos, não dos 1.900 realmente relatados.
A razão pela qual o número total de casos nos EUA e no Reino Unido é tão baixo é porque estamos fazendo um número muito pequeno de testes para o vírus. Eu voltarei a isso.
O notável sucesso da China no controle do vírus está documentado no Relatório da Missão Conjunta OMS-China sobre Doença de Coronavírus 2019 (COVID-19), de 16 a 24 de fevereiro. Você pode ler o relatório completo aqui5, mas há um excelente resumo aqui6.
O diagrama reproduzido abaixo da página 29 do relatório (você pode vê-lo mais facilmente aqui5) mostra o número de casos pelo tempo na China, juntamente com as principais intervenções feitas para tentar retardar a doença.
O surto foi anunciado pela primeira vez em 30 de dezembro e o novo coronavírus foi isolado em 7 de janeiro e sua sequência genética compartilhada publicamente em 10 de janeiro. O número de novos casos por dia chegou a cerca de 3.000, pouco mais de duas semanas depois, em 26 de janeiro, mas caiu para menos de 500 casos diariamente até 14 de fevereiro.
Um artigo publicado em 16 de março na Science7 mostra que o vírus teve grande impacto na população chinesa porque eles não foram capazes de identificar e isolar os casos iniciais.
Eles estimaram que 86% de todas as infecções não eram documentadas antes das restrições de viagem de 23 de janeiro de 2020. A taxa de transmissão de infecções não-documentadas foi de apenas 55% das infecções documentadas, presumivelmente porque as pessoas afetadas apresentavam sintomas menos graves; no entanto, devido ao seu maior número, infecções não-documentadas foram a fonte de infecção para 79% dos casos documentados. Essas descobertas explicam a rápida disseminação geográfica inicial do vírus.
No entanto, após o estágio inicial, a China superou rapidamente o surto por meio de um vigoroso programa de testes generalizados, após o isolamento dos afetados, respaldado por restrições de viagem.
Teste de coronavírus na China e no Reino Unido A
China tem uma política de identificação meticulosa de casos e contatos para o COVID-19. Por exemplo, em Wuhan, mais de 1.800 equipes de epidemiologistas, com um mínimo de 5 pessoas / equipe, rastrearam dezenas de milhares de contatos por dia. O acompanhamento dos contatos foi meticuloso, com uma alta porcentagem de contatos próximos identificados completando a observação médica. Entre 1% e 5% dos contatos foram, subsequentemente, casos confirmados laboratorialmente de COVID-19, dependendo da localização.
Mas o esforço fora de Wuhan também foi enorme6. Em Shenzhen, por exemplo, os infectados nomearam 2.842 pessoas de contato, todas encontradas, quando os testes foram concluídos para 2.240 e verificou-se que 2,8% deles haviam contraído o vírus.
Nas semanas seguintes à identificação do vírus, uma série de ferramentas de diagnóstico confiáveis e sensíveis foram desenvolvidas e implantadas. Até 23 de fevereiro, havia dez kits para detecção de COVID-19 aprovados na China pelo NMPA e vários outros testes haviam sido inseridos no procedimento de aprovação de emergência. No geral, os produtores têm capacidade para produzir e distribuir até 1.650.000 testes / semana.
Em contraste, com base nos números disponíveis em 13 de março, o Reino Unido realizou cerca de 30.000 testes Covid-19, com uma média de 1.600 testes por dia até agora em março.
O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse nesta semana8 que tinha uma mensagem simples para os países sobre como lidar com o surto de coronavírus que varre o mundo: ‘Teste, teste, teste’.
Em uma entrevista coletiva na segunda-feira, ele pediu aos países que testem mais casos suspeitos, alertando que “não podem combater um incêndio com os olhos vendados”.
Mas combater o fogo com os olhos vendados é essencialmente o que o Reino Unido e os EUA têm feito – simplesmente porque não existem kits de teste suficientes. Isto foi admitido pelo conselheiro do governo britânico Professor Chris Whitty esta semana.
Em 6 de fevereiro, a Organização Mundial da Saúde disse9 que já havia enviado 250.000 testes para mais de 70 laboratórios em todo o mundo.
Mas, como a OMS enviou centenas de milhares de testes, os testes mais amplos nos EUA lutaram para começar. Os kits dos EUA, desenvolvidos pelo CDC, acabaram não funcionando10 como esperado, fato que eventualmente exigiu que kits de teste fossem remanufaturados. De fato, no início desta semana, foi relatado que os EUA atrasaram quase todos os países desenvolvidos11 na testagem para o vírus.
Embora a abundância de kits de teste na China significasse que todos os que estavam com febre ou que tiveram contato com uma pessoa infectada fossem testados6, a escassez de kits de teste no Reino Unido fez com que os testes sequer estivessem disponíveis para médicos na linha de frente ou para os pacientes de alto risco. De fato, as únicas pessoas que foram testadas até muito recentemente foram aquelas com sintomas graves internadas no hospital.
O que isto significa é que aqueles com casos menos graves de COVID-19 foram capazes de circular livremente para espalhar doenças, e as pessoas da linha de frente (médicos e outros profissionais de saúde) que estão doentes, mas na verdade não têm o vírus, estão sendo colocadas em quarentena desnecessariamente por 14 dias, juntamente com suas famílias, quando poderiam estar tratando pacientes.
Uma pandemia fora de controle
Já se passaram mais de dois meses desde que a China iniciou seu programa de controle e os países parecem agora estar divididos em dois grupos – aqueles onde o vírus aparenta estar se propagando amplamente fora de controle (principalmente na Europa Ocidental) e aqueles no leste da Ásia, onde houve sucesso em acompanhar sua disseminação.
O diagrama (abaixo) demonstra isso dramaticamente.
Os casos (e mortes) na Europa e nos EUA estão acentuadamente fora de controle, mas em Cingapura, Japão e Hong Kong – usando uma abordagem mais parecida com a chinesa – a curva está se achatando consideravelmente ao longo do tempo.
Hoje mesmo, um artigo na Science12 atribuiu o sucesso surpreendente da Coréia do Sul até o momento ao programa de testes mais amplo e bem organizado do mundo, combinado com extensos esforços para isolar pessoas infectadas, rastrear e colocar em quarentena seus contatos.
A Coréia do Sul testou mais de 270.000 pessoas, o que equivale a mais de 5.200 testes por milhão de habitantes. Por outro lado, até agora os EUA realizaram 74 testes por 1 milhão de habitantes, segundo dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA.
A experiência da Coréia do Sul mostra que ‘a capacidade de diagnóstico em escala é fundamental para o controle de epidemias’, diz Raina MacIntyre, uma estudiosa em doenças infecciosas emergentes da Universidade de New South Wales, em Sydney.
Os relatórios da semana passada da Itália descreviam médicos que optaram por sequer avaliar pacientes de alto risco, muito menos realizar intubação e ventilação, porque eles estavam simplesmente consternados com os números (veja o assustador tópico do twitter13 e também o artigo da Lancet de 13 de março14 nas referências). A Espanha está seguindo esse curso de perto, mas outros países, incluindo Alemanha, Reino Unido, Holanda e Suíça, estão apenas uma ou duas semanas atrás.
É um princípio fundamental na medicina que não existe tratamento sem diagnóstico. Precisamos de mais kits de teste implantados rapidamente. É incrível que, mesmo nesta fase tardia, nós não sabemos de fato quem realmente tem a doença e quem não tem.
Já existem muitos tipos15 de kits de teste disponíveis e aptos para produção em massa (veja nas referências16). O governo do Reino Unido pode agilizar o processo de aprovação, como a China fez com tanto sucesso, para colocá-los em operação?
Obviamente, todas as outras medidas para impedir a propagação, que o Reino Unido já implementou e com as quais estamos bem familiarizados, são absolutamente necessárias e corretas. E precisamos de muito mais médicos, oxigênio e ventiladores para fornecer suporte para a maré crescente de casos graves.
Os números da China6 indicam que 20% de todos os casos precisaram de hospitalização e oxigênio frequentemente por semanas e 25% destes (5% no total) precisaram de ventilação ou ECMO. Quando consideramos que, até recentemente, o Reino Unido possuía apenas 4.000 ventiladores, 80% dos quais já estavam ocupados, podemos começar a compreender o quanto isso é sério.
Mas também está claro que, se tivéssemos implantado testes e rastreamento de contato mais rigorosos nos estágios iniciais dessa pandemia, não estaríamos na posição em que estamos agora.
Orgulhamo-nos no Reino Unido do nosso padrão de medicina e do NHS. Mas estamos muito atrás dos padrões da China e de outros países do Leste Asiático em relação a nossa gestão nessa crise.
Se é tarde demais para corrigir isso, apenas o tempo dirá. Terminaremos no Reino Unido com 20.000 mortes, 250.000 ou 500.000?
O que está claro é que muitas vezes mais do que 140 morrerão (o número de mortes que o Reino Unido deveria ter se equiparado à China em termos populacionais). Esse total será repassado nos próximos dias e os consultores estão prevendo que novos casos por dia não atingirão o pico por mais 10 – 14 semanas. O pico da taxa de mortalidade será de duas a três semanas depois disso.
É claro que, a partir desta semana, o governo do Reino Unido está agora muito melhor informado e fazendo todos os esforços para vencer esse desafio (resumo útil nas referências17). Enquanto todos trabalhamos juntos, oramos para que esses esforços sejam bem-sucedidos e que o número de mortos no Reino Unido esteja muito mais próximo de 20.000 do que de 500.000.
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Tradução: Médicos de Cristo
Referências
2. https://www.bbc.co.uk/news/health-51915302
4. https://www.worldometers.info/coronavirus/
6.https://www.reddit.com/r/China_Flu/comments/fbt49e/the_who_sent_25_international_experts_to_china/
7. https://science.sciencemag.org/content/early/2020/03/24/science.abb3221
10. https://edition.cnn.com/2020/03/18/health/who-coronavirus-tests-cdc/index.html
11.https://www.vox.com/science-and-health/2020/3/12/21175034/coronavirus-covid-19-testing-usa
13. https://twitter.com/jasonvanschoor/status/1237142891077697538
14. https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30627-9/fulltext
15. https://www.wired.co.uk/article/coronavirus-testing-uk
16. https://www.theengineer.co.uk/oxford-rapid-coronavirus-test/