Cristianismo em tempos de praga

As infecções epidêmicas eram uma fonte de terror no mundo antigo. Elas varriam as cidades do Império Romano, causando devastação. A Praga de Cipriano foi uma pandemia que afligiu o Império Romano entre 249 e 262 dC. De 250 a 262, no auge do surto, diz-se que 5.000 pessoas morriam por dia na própria cidade de Roma.

Pôncio de Cartago escreveu uma descrição em primeira mão:

“Posteriormente, eclodiu uma terrível praga, e a destruição excessiva de uma doença odiosa invadiu em sucessão todas as casas  da população trêmula, levando, dia após dia, com ataques abruptos, inúmeras pessoas, cada uma de sua própria casa. Todos estavam estremecendo, fugindo, evitando o contágio, expondo impiedosamente seus próprios amigos, como se, com a exclusão da pessoa que certamente morreria de peste, alguém pudesse excluir também a própria morte. Enquanto isso, por toda a cidade, não havia mais corpos, mas as carcaças de muitos e, pela contemplação de tantos que, chegado o tempo, seriam os seus, despertavam a pena por si mesmos dos que passavam. Ninguém considerava nada além de seus ganhos cruéis. Ninguém tremia com a lembrança de um evento semelhante. Ninguém fazia para outro o que ele próprio desejava que fosse feito para si …”.

Surpreendentemente, nenhum relato em primeira mão dos sintomas clínicos e sinais da praga foi registrado pelos médicos hipocráticos da época. Embora as descrições clínicas de muitas outras doenças tenham sido registradas com grandes detalhes, observou-se que as descrições médicas contemporâneas de pestes parecem vagas e impressionistas.

Por que isso? Quase certamente porque, ao primeiro sinal da praga, os médicos hipocráticos teriam abandonado as cidades e fugido para a segurança do campo! Quando a peste ameaçou Roma, o grande médico Galeno mudou-se rapidamente para uma propriedade rural na Ásia Menor, onde ficou até o perigo recuar.

Na obra hipocrática “The Art”, o objetivo do médico foi definido como “acabar com os sofrimentos dos doentes, diminuir a violência de suas doenças, e recusar-se a tratar aqueles que estão dominados por suas doenças, percebendo que, nesses casos, a medicina é impotente.” Tratar os que estavam morrendo seria como trazer descrédito à reputação da profissão e prejudicar a fé na habilidade de cura do médico.

Portanto, é notável que tenha sido um bispo cristão, Cipriano, quem forneceu a descrição clínica mais precisa e detalhada da praga antiga: “Estes são apresentados como prova de fé: que, na medida em que a força do corpo é dissolvida, os intestinos se dissipam em um fluxo; que um incêndio que começa nas profundezas mais íntimas se inflama em feridas na garganta; que os intestinos são sacudidos com vômitos contínuos; que os olhos são incendiados pela força do sangue; que a infecção da putrefação mortal corta fora os pés ou outras extremidades de alguns; e que, como a fraqueza prevalece mediante às falhas e perdas dos corpos, a marcha é paralisada ou a audição é bloqueada ou a visão é cegada …”

O relato de Cipriano sugere que a praga do terceiro século, que ele testemunhou, pode ter sido uma infecção viral hemorrágica altamente infecciosa e letal semelhante ao vírus Ebola, embora haja controvérsia contínua sobre a natureza dessas epidemias antigas.

O que está claro é que houve cenas de horror – as ruas cheias dos corpos sangrentos dos moribundos, e tentativas desesperadas da população de salvarem a si mesmos, independentemente das consequências para os outros. Aqui está outro relato de testemunha de Dionísio, em Alexandria: “No início da doença, os pagãos afastaram os doentes e fugiram de seus entes queridos, jogando-os nas estradas antes de morrerem e tratando cadáveres não enterrados como sujeira, esperando assim evitar a disseminação e o contágio da doença fatal; mas seja o que fizessem, encontraram dificuldades para escapar … “

Contudo, em muitas daquelas cidades do Império Romano havia um pequeno corpo de cristãos, muitas vezes evitados e desprezados como “ateus” (porque não havia ídolos em suas casas e reuniões) ou “galileus”. Como eles irão responder nesse tempo de horror e angústia? Eles também fugirão para o campo para salvar suas próprias vidas?

O relato de Dionísio continua: “… Muitos de nossos irmãos e irmãs cristãos mostraram amor e lealdade ilimitados, nunca poupando a si mesmos e pensando apenas uns nos outros. Indiferentes ao perigo, cuidaram dos enfermos, atendendo a todas as suas necessidades e ministrando-os em Cristo, e com eles partiram desta vida serenamente felizes; pois foram infectados por outros com a doença, recebendo em si mesmos a enfermidade de seus vizinhos e aceitando alegremente suas dores. Muitos, cuidando e curando os outros, transferiram a morte deles para si mesmos e morreram em seu lugar…”

Seguindo o exemplo de Cristo, os fiéis cristãos prestaram cuidados de enfermagem compassivos a seus vizinhos pagãos – trazendo-os para dentro de suas casas, lavando feridas, limpando o sangue e a diarréia, fornecendo água, comida e remédios básicos, “ministrando a eles em Cristo”, mesmo sabendo que estavam se expondo a riscos extremos.

O mundo antigo nunca tinha visto nada assim. Rodney Stark, um historiador social, empreendeu uma análise detalhada concluindo que as ações dos cristãos em tempos de praga eram um dos fatores mais importantes no crescimento explosivo da igreja cristã nesse período.

Quando leio esses relatos, sinto-me indigno de ser chamado pelo mesmo título que um cuidador cristão. Quão pouco experimentei o custo do cuidado aos moldes de Cristo em comparação com minhas irmãs e irmãos do terceiro século.

Mas, nos séculos seguintes, os prestadores de cuidados cristãos se comportaram da mesma maneira durante a trágica história de epidemias, desde a Praga Cipriana em 250 até a epidemia de Ebola em 2014 e até o presente. Muitos dos enfermeiras e médicos em Serra Leoa que sacrificaram suas vidas para cuidar das vítimas do Ebola eram fiéis cristãos. Eles sabiam que o equipamento de proteção era precário e que, apesar de seus melhores esforços, não podiam se proteger completamente. E, no entanto, continuaram cuidando, assim como seus antigos irmãos e irmãs que ministraram aos enfermos em Cristo.

E não tenho dúvidas de que, nas próximas semanas e meses, surgirão histórias de auto-sacrifício heróico. Certamente, não são apenas os fiéis cristãos em nosso mundo moderno que praticam o sacrifício por estranhos. Devemos celebrar as ações de cuidado de todos, qualquer que seja seu credo ou motivação. E, é claro, como cuidadores profissionais, devemos ser sábios ao tomar medidas de proteção, para que possamos continuar a cuidar sempre que possível, em vez de nos tornarmos vítimas. Mas não devemos esquecer a nobre história do cristianismo em tempos de praga 1, lembrando as palavras de Jesus, exatamente como os primeiros cristãos fizeram: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. Mateus 25:40.


Por John Wyatt, professor emérito de pediatria neonatal da UCL e pesquisador sênior do Instituto Faraday de Ciência e Religião da Universidade de Cambridge.

Republicado com permissão dos CMF Blogs.

Tradução: Médicos de Cristo

Referências:

1. https://www.buzzsprout.com/437878/3056704-coronavirus-and-costly-love

Leitura adicional

Rodney Stark, A Ascensão do Cristianismo, HarperCollins. Disponível em: https://www.harpercollins.com/9780060677015/the-rise-of-christianity/

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