Enfrentando a COVID-19 em um local remoto e com poucos recursos

Quando recebi a ordem do governo no final de março dizendo que seríamos o único hospital designado para COVID-19 para todo o distrito de Simdega, senti meu coração afundar.

Eu sou o mais velho entre três médicos em um pequeno hospital chamado Shanti Bhavan Medical Center, em uma vila chamada Biru, situada no estado de Jharkhand, na Índia. Lidero uma equipe de quatro médicos – dois médicos experientes, incluindo eu (tenho quase 70 anos) e dois jovens médicos recém-saídos da faculdade.

Somos o único hospital de nível secundário em um raio de 70-80 quilômetros, e para uma unidade com UTI não há mais ninguém em 100 quilômetros. Os centros maiores mais próximos estão em Ranchi e Rourkela – mais de 100 quilômetros e um mínimo de 3-4 horas de viagem rodoviária de distância.

Ao redor do hospital, há pequenos vilarejos habitados predominantemente por tribos. A população local está envolvida na agricultura marginal, além da coleta de produtos florestais. A atividade agrícola ocorre apenas durante a estação das chuvas. Quando não há cultivo, os homens migram principalmente para os estados vizinhos como trabalhadores, deixando para trás idosos, crianças e mulheres. Portanto, nosso hospital existe entre uma população muito marginalizada.

O alcoolismo é alarmante entre ambos os sexos, independentemente da idade, e somado a isso há uma alta taxa de analfabetismo. As pessoas são tão pobres que muitas vezes não conseguem pagar nem mesmo o custo mínimo do tratamento. Esta instalação com 60 leitos é bem equipada, mas com falta de pessoal. Lidamos com uma ampla gama de emergências, como picadas de cobra, envenenamento, infarto agudo do miocárdio e malária cerebral. Também gerenciamos todos os tipos de trauma, incluindo traumatismo craniano, trauma múltiplo e ferimentos devido a ataques de faca.

Ao receber a ordem governamental, minha primeira reação foi de pânico, pois não tínhamos todos os recursos de que precisávamos. Não havíamos preparado nenhuma de nossas instalações para cuidar de pacientes com COVID-19. Depois, havia a preocupação com a segurança de nossa equipe – não apenas por mim, porque estou perto dos 70, mas também por outras pessoas que estão na casa dos 40 e 50 anos.

Eu estava para conseguir obter protocolos relativos ao gerenciamento da COVID-19. Por estarmos isolados da comunidade médica principal/central, era difícil para a gente obter informações confiáveis ​​e autênticas. Já havia medo criado nas mentes de todos os nossos funcionários por causa do que foi divulgado nas plataformas de mídias sociais. Somado a isso, havia o impacto da quarentena nacional, sem lojas, suprimentos ou transporte. Parecia que íamos atravessar um túnel escuro sem saber aonde nos levaria.

Mas quase não havia tempo para pensar, pois tínhamos de ‘começar a trabalhar logo’. Não tínhamos EPI e eles não estavam disponíveis em nenhum lugar. Não tínhamos medicamentos específicos e nossos fornecedores foram fechados. Então, foi como entrar em uma batalha sem armadura em nossos corpos e sem armas em nossas mãos.

Usamos todos os recursos para preparar o EPI. Não havia nenhum que pudesse ser comprado localmente. Apesar de todas essas dificuldades, a equipe foi estóica [2] e cooperou de coração. Pegamos dinheiro emprestado e compramos qualquer material que pudéssemos conseguir nas lojas locais. Em seguida, projetamos nosso próprio EPI – equipamento de proteção costurado à mão – com todos contribuindo. Compramos pó de descoloração, preparamos uma solução de hipoclorito e coletamos álcool industrial para higienizadores de mãos. Tudo o que julgamos necessário para tratar os pacientes com COVID-19, improvisamos. Fizemos nossas próprias máscaras de tecido de quatro camadas e convertemos folhas de plástico em aventais e galochas em calçados de proteção.

Então começou uma cascata de problemas com os quais nunca tínhamos sonhado. Como um hospital COVID-19, não tínhamos permissão para atender nenhum paciente de rotina não COVID-19. Assim, nossa principal fonte de renda desapareceu repentinamente. Nossas reservas se esgotaram e ficamos reduzidos a uma existência cotidiana precária, sempre preocupados com de onde viriam os meios de sobrevivência do dia seguinte.

Para agravar tudo isso, havia o enorme estigma social associado ao fato de sermos um hospital para coronavírus. Muitos de nossos funcionários que vinham de vilarejos próximos foram impedidos de trabalhar porque eram suspeitos de transportar o vírus de volta para seus bairros. Eles foram proibidos de tomar banho no lago da aldeia ou de chegar perto de qualquer poço de água e foram orientados a não se aproximar da igreja ou das lojas locais. Muitos deles foram ameaçados de violência se persistissem em vir trabalhar no hospital. O estigma da COVID-19 é tão profundo na comunidade que nossa equipe quase foi excluída em suas aldeias. A intervenção da polícia local não teve muito efeito. Então, nós os levamos para o hospital e lhes demos acomodação temporária e alimentação. Isso nos deixou cada vez mais endividados, pois tínhamos que pedir mais empréstimos para suprimentos e alimentos.

Oramos juntos todas as manhãs e noites, suplicando a Deus que nos guiasse. Ficamos de mãos dadas, prometendo cuidar uns dos outros, mesmo se adoecêssemos. A convicção cresceu em nós, lenta mas seguramente, de que podemos fazer coisas com a ajuda de Deus, apesar dos problemas aparentemente intransponíveis que enfrentamos.

Começamos com o que tínhamos quando os primeiros pacientes chegaram. Iniciamos com a firme confiança de que Deus estava conosco nesta jornada conturbada. Nos sentimos ligados a Deus e uns aos outros quando começamos a cuidar dos pacientes infectados com COVID-19. Nunca deixamos de nos encontrar todos os dias para orar e apoiar uns aos outros. Pela graça de Deus, conseguimos obter medicamentos dos suprimentos do governo.

O estado de Jharkhand estava enfrentando um enorme fluxo de trabalhadores migrantes voltando de outros estados e temíamos que uma enxurrada de casos COVID-19 estivesse a caminho. Nossos temores foram provados corretos quando muitos dos trabalhadores que retornaram estavam infectados. Eles logo começaram a chegar à nossa porta – homens, mulheres grávidas e até crianças. Eles chegaram exaustos, desidratados e às vezes morrendo de fome. Cada um deles tinha uma história angustiante sobre dificuldades inimagináveis ​​pelo caminho. Eles chegaram com nada além do que estavam em suas costas – sem muitos bens materiais, sem dinheiro e sem documentos. Além de tudo isso, estar infectado com a COVID-19 foi o pior de seus sofrimentos.

O que começou como um gotejamento tornou-se uma inundação. Ao mesmo tempo, tínhamos 40 pacientes positivos para COVID-19 na enfermaria, incluindo mulheres grávidas e uma criança de três anos. Todos eles tiveram que ser alimentados e cuidados.

Apesar de todos os desafios, nós os tratamos com cuidado e compaixão, sem comprometer a segurança da equipe. Asseguramos que eles fossem alimentados com comida nutritiva e tivessem um tempo de descanso. Era muito evidente que eles não podiam esquecer facilmente o trauma de sua jornada. Estávamos muito preocupados com as mulheres grávidas e as crianças. Éramos apenas alguns médicos e enfermeiras, mas trabalhávamos sem parar, apesar de nossos temores de segurança e nosso cansaço físico. Foi uma tarefa difícil para uma pequena comunidade como a nossa.

Foi difícil convencer uma criança de três anos a não sair do confinamento de seu quarto. Para muitos deles, especialmente as crianças, deve ter sido uma experiência assustadora – o isolamento estrito e os trabalhadores médicos cuidando deles com roupas estranhas, sem seus rostos nem suas expressões claramente visíveis.

Em um ponto, pensamos que havia chegado ao fim de nossos recursos e determinação. Fomos forçados ao limite por dinheiro, poder material e humano. Eu não estava orgulhoso de estar neste estado e estava extremamente angustiado por pedir aos funcionários que colocassem suas vidas em perigo sem poder pagar-lhes um salário mínimo. Eu não tinha mais orgulho de mim mesmo para fingir que poderíamos viver por conta própria. Oramos fervorosamente para que Deus encontrasse uma maneira de continuarmos caminhando fielmente e de servi-Lo, apesar das probabilidades aparentemente intransponíveis.

Então, na hora certa, muitos dos meus professores, colegas, ex-alunos, ex-colegas e estudantes entraram em cena com suas ofertas de apoio. Por meio de algumas dessas conexões, muitas portas de generosidade se abriram, além dos meus sonhos mais impensáveis.

O que começou como um gotejar de doações, logo se tornou uma torrente de bênçãos. Isso trouxe presentes em dinheiro para pagamentos de materiais, EPIs, medicamentos, bem como despesas com alimentação para todos nós. Isso nos garantiu nossa segurança e provisão para nossas necessidades imediatas. Eu poderia dormir tranquilo depois de passar noites sem dormir me preocupando em atender às necessidades do dia seguinte.

Até agora, tratamos 173 pacientes – incluindo casos positivos para COVID-19 e casos suspeitos de COVID-19. Todos os casos confirmados tornaram-se negativos, tiveram alta e foram bem encaminhados para casa. Não houve mortalidade. Toda a nossa equipe está segura e ninguém foi infectado até o momento. Tudo isso foi possível pela graça de Deus, bem como pela bondade e apoio de tantos ligados ao Christian Medical College Vellore, minha alma mater[3].

A luta continua. Mas acreditamos que não estamos sozinhos neste canto esquecido da Índia, travando uma luta solitária contra esse inimigo invisível. Deus tem estado conosco constantemente. Nós sobrevivemos até agora com Graça, Coragem e Gratidão – a graça de Deus e tantas pessoas conectadas aos meus dias na faculdade de medicina; a coragem de nossa pequena equipe, que ficou firme comigo persistentemente, apesar de suas frustrações e exaustão; gratidão a Deus por sua imensa misericórdia em nos manter seguros e às nossas famílias e amigos por seu apoio e orações constantes.

Em última análise, percebemos que estes são tempos sem precedentes. Em O Senhor dos Anéis, Frodo diz, ‘“Gostaria que isso não tivesse acontecido na minha época.” “Eu também,” disse Gandalf, “Como todos os que vivem nestes tempos. Mas a decisão não é nossa. Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado.”'[4]

Mas para nós, como cristãos, a firme convicção é que nossos tempos estão nas mãos do Senhor, como está escrito em Isaías 43:1-2:’ Mas agora assim diz o Senhor, aquele que o criou, ó Jacó, aquele que o formou, ó Israel: “Não tema, pois eu o resgatei; eu o chamei pelo nome; você é meu. Quando você atravessar as águas, eu estarei com você; e, quando você atravessar os rios, eles não o encobrirão. Quando você andar através do fogo, você não se queimará; as chamas não o deixarão em brasas.’ (NVI)

Nós, como uma pequena equipe de trabalhadores de saúde cristãos em um canto remoto e isolado da Índia, podemos testemunhar que essa promessa é verdadeira enquanto continuamos a testemunhar nosso Salvador servindo aos aflitos pela  COVID-19 nessas circunstâncias difíceis e provadoras.


O Dr. George Mathew é o diretor médico do Shanti Bhavan Medical Center na vila de Biru, no distrito de Simdega, no estado de Jharkhand, na Índia. Ele pode ser contatado em gmathewvellore@yahoo.com.

Ouça um recente webinar do Dr. Mathew enquanto ele descreve com mais detalhes como é enfrentar a COVID-19 em um local remoto e com poucos recursos: https://www.youtube.com/watch?v=qeoVYf67veE

Referências

1. Médicos de Cristo – Tradução: Mireille Gomes / Revisão: Flávia Figueiró.

2. Estoicismo – substantivo masculino Rigidez ou fidelidade aos seus próprios princípios. [Filosofia]

3. Alma mater – expressão alegórica em latim que pode ser traduzida como a mãe que alimenta ou nutre.

4. TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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