O servo cristão – cuidando com o amor que sacrifica a si mesmo

João 13:1-20

Jesus está chegando ao ápice de sua vida. Todos os seus atos de serviço estavam prestes a ser culminados e somados em seu sacrifício voluntário na cruz. E tudo isso motivado pelo amor ágape – o amor que dá.

‘Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim (telos)’. O exemplo supremo do amor que sacrifica a si mesmo está prestes a ser demonstrado agora, no ato de lavar os pés,  e na cruz que está por vir. Este é um momento sagrado. Jesus está passando as últimas horas com seus poucos escolhidos, e o maligno também está na sala – no coração de Judas Iscariotes.

A ênfase de João está no conhecimento total e inabalável de Jesus – tanto de si mesmo como de seu ser, de seu status, de seu chamado e deste momento – ‘a hora havia chegado‘.

Há quatro coisas que Jesus conhece inteiramente e de forma inabalável no âmago de seu ser.

  1. Era chegada a hora
  2. O Pai havia entregado todas as coisas em suas mãos
  3. Ele tinha vindo de Deus
  4. Ele estava voltando para Deus.

Elas contemplam de onde Ele veio. Na bem-aventurança da Santíssima Trindade; sua posição suprema no cosmos como Senhor dos Senhores; a relevância desta hora – o ponto crucial – o pivô de toda a história da salvação; e seu destino final na mão direita do Pai.

É isso que Jesus sabe, e é isso que lhe dá total segurança em quem Ele é. Com tal poder e status, podemos esperar que Ele derrote o diabo que está na sala com Ele em uma explosão avassaladora de luz e poder espiritual. “Vi o maligno cair do céu como um relâmpago”. Ele poderia ter surpreendido Judas num instante com uma rajada de ira divina.

Em vez disso, Ele se levanta da mesa e se inclina para o chão. E Ele lava os pés dos seus discípulos.

Lavar os pés era a ocupação mais servil, humilde e desprezada, reservada para os mais baixos dos mais baixos. As ruas de Jerusalém eram sujas e asquerosas – havia imundíce, doenças, urina e excremento nas estradas. Não é preciso muita imaginação para ver por que lavar os pés era uma tarefa imunda e humilhante. Era particularmente inaceitável para uma pessoa religiosa porque levava à impureza ritual, e aquele que lavasse os pés seria proibido de participar de todas as atividades religiosas.

Alguns judeus nobres insistiam que os escravos judeus não deveriam ser obrigados a lavar os pés dos outros. Em essência, esse trabalho deveria ser reservado para escravos gentios – ou, alternativamente, para mulheres e crianças que não contavam. E, é claro, podemos ver que ser forçado por outros a assumir esse papel – ser compelido por força a lavar os pés fedorentos de outros – é profundamente abusivo, prejudicial e humilhante.

A literatura judaica registra que, quando o rabino Ismael, certo dia, voltou da sinagoga para casa, sua mãe desejava lavar os seus pés. Ele recusou, alegando que a tarefa era muito humilhante. Aparentemente, não há nenhum caso registrado na literatura judaica, grega ou romana de um superior lavando os pés de um inferior.

Portanto, o choque dos discípulos na ação de Jesus é compreensível. Como pode o Senhor e Mestre deles fazer uma coisa dessas? Ele perdeu a cabeça? Ou isso significa que talvez Jesus não seja quem Ele afirma ser?

O ponto crítico é que João justapõe a segurança total e inabalável de Jesus em seu autoconhecimento com sua ação no serviço humilde e humilhante. A profunda percepção psicológica de João (e a inspiração de suas palavras pelo Espírito) é que é exatamente por causa da total segurança de Jesus em seu status que Ele é capaz de se rebaixar dessa maneira impressionante.

É um exemplo da profunda doutrina cristã da kenosis. Aquele que, embora fosse da própria natureza de Deus, não considerou a igualdade com Deus algo com o qual se apegar, mas se esvaziou (kenosis) – fez de si mesmo nada – e assumiu a forma de servo. Ele se humilhou tornando-se obediente ao ponto de morte, até a morte na cruz (Filipenses 2).

Jesus tira sua roupa exterior (talvez simbolizando despojar-se da segurança externa), pega a toalha do servo e a coloca na cintura. Ele voluntariamente adota os trajes e a aparência do escravo doméstico mais humilde. Ele derrama água em uma bacia, ajoelha-se e começa a tarefa imunda.

A doutrina da kenosis não significa que Jesus troca a forma de Deus pela forma de um servo. Isso significa que Jesus, voluntária e conscientemente, se rebaixa a fim de que a verdadeira natureza de sua divindade seja revelada inconfundivelmente através da fragilidade humana e do sacrifício humilde. Seu status não é perdido pelo ato de lavar os pés – ele é poderosamente revelado, desvendado e conhecido.

Aqui está um experimento reflexivo. Imagine-se incontinente, deitado em fezes, urina e vômito, sendo gentil e ternamente lavado e limpo pelo próprio Cristo. Essa é a verdadeira natureza de Deus revelada na face de Jesus Cristo.

Penso que é profundamente significativo o fato de que Jesus lava os pés de Judas Iscariotes também, aquele habitado pelo maligno. Ele não se limita apenas a pessoas boas, pessoas gratas e aos escolhidos. Ele lava os pés dos desagradáveis, dos hostis, dos perversos, dos abusivos, dos maliciosos, que estavam dedicados a destruí-Lo. Ele lava os pés do próprio maligno! Que poder majestoso e misterioso. Como Ele pode fazer isto? Isso vem de sua total segurança inabalável em quem Ele é.

Tendo realizado essa ação dramática e chocante, Jesus a explica. Primeiro, há a ação divina e, depois, vem a explicação.

Em João 13 a partir do verso 12 (NVI): “Vocês entendem o que lhes fiz? Vocês me chamam ‘Mestre’ e ‘Senhor’, e com razão, pois eu o sou. Pois bem, se eu, sendo Senhor e Mestre de vocês, lavei-lhes os pés, vocês também devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei o exemplo, para que vocês façam como lhes fiz. Digo-lhes verdadeiramente que nenhum escravo é maior do que o seu senhor, como também nenhum mensageiro é maior do que aquele que o enviou.”

Jesus reivindica o título de Senhor, aquele que tem total autoridade sobre seus discípulos, e Mestre, aquele que instrui, guia e modela.

“Para que vocês façam como lhes fiz”. Mas, assim como o amor-próprio e o auto-rebaixamento voluntário de Cristo estão enraizados em sua segurança em seu status supremo, da mesma maneira, não podemos tomar o lugar mais baixo, a menos que estejamos enraizados e fundamentados no conhecimento e segurança de nosso próprio status.

Ser forçado por um poder externo a assumir o papel do mais baixo dos mais baixos, do escravo doméstico, é prejudicial, abusivo, destrutivo. Mas escolher voluntariamente o papel mais baixo, motivado pelo amor e na segurança de conhecer nosso status real, como filhas e filhos amados do Rei, é totalmente diferente. Essa é a profunda dignidade do serviço semelhante a Cristo.

Assim, a ação de Cristo é motivada por gratuito amor ágape , ‘não há compulsão no amor’. Não é coagido, manipulado, nem mesmo conduzido por um senso de dever, de “obrigação”. É totalmente gratuito e sem coerção.

E, embora não esteja registrado na passagem, sabemos de outras partes do Novo Testamentoem que a ação de Cristo foi motivada pela alegria. “pela alegria que lhe fora proposta, suportou a cruz, desprezando a vergonha.”1 Foi alegria, borbulhante, inexprimível, alegria eterna que motivou Jesus a assumir o papel de escravo.

Do lado de fora, as ações de Cristo e as ações do escravo doméstico maltratado podem parecer indistinguíveis. Eles estão vestindo as mesmas roupas, rastejando no chão, cobertos de sujeira, consumidos pelo trabalho exaustivo. Mas o escravo doméstico é movido por força e necessidades externas, está consciente de seu status de mais baixo dos mais baixos, inferior da pilha, lixo humano e é danificado, diminuído e humilhado pelo processo.

O servo cristão é movido por um amor ágape, compaixão e alegria, consciente de seu status supremo como princesa ou príncipe amado e honrado da família real, e é enobrecido, edificado e realizado pela ação, emocionado por estar vivendo a vida, o amor e a presença de Jesus. Por fora, eles são indistinguíveis, mas por dentro, a experiência é totalmente diferente.

O exemplo de Jesus e sua descrição no Evangelho de João foi um pavio que acendeu uma explosão de cuidado no mundo antigo. Foi profundamente educativo como um modelo de serviço e cuidado cristão para os doentes, os infectados e os que estavam morrendo. E se tivermos ouvidos para ouvir, esse exemplo pode acender novas explosões hoje.

João justapõe a história de Jesus lavando os pés dos discípulos com outra lavagem de pés – mas desta vez é Jesus quem tem os pés lavados.

Em João 12, João enfatiza que esse incidente acontece apenas alguns dias antes de Jesus ser crucificado na época da Páscoa – a hora em que o Cordeiro sacrificado foi morto.

Maria, que já se sentou aos pés de Jesus, agora leva um litro de perfume caro – uma quantidade enorme equivalente a mais de 300 gramas – ajoelha-se aos pés de Jesus e unge seus pés (e provavelmente outras partes do corpo) com o precioso bálsamo. Tal é a quantidade do perfume que toda a casa é preenchida com a fragrância. E então, em um ato chocante e íntimo, ela solta seus cabelos, ajoelha-se aos pés dEle e os seca com ternura utilizando seus cabelos.

É uma cena estranha e maravilhosa de sacrifício extravagante e ternura íntima; é um ato sensual e escandaloso. Mulheres judias respeitáveis ​​não soltavam os cabelos em companhia de homens – isso era algo para a intimidade e privacidade do quarto.

Maria está demonstrando seu amor e preocupação por Cristo por meio desse ato que abrange humildade e rebaixamento de si mesma, ternura e sacrifício voluntário extravagante pela pessoa de Cristo. Curiosamente, esse episódio vem antes do exemplo da lavagem dos pés em João 13. Maria não precisa ser ensinada sobre o lavar dos pés – ela faz isso instintivamente e generosamente.

A reação de Judas é a da moralidade criteriosa, pragmática e baseada em evidências. O bálsamo valia quase um ano de salário para um trabalhador camponês. Milhares de libras. Mas Jesus entende o coração de Maria e a defende. O significado de suas palavras é incerto, mas suspeito que Jesus viu que ela estava, na realidade, ungindo seu corpo para a sepultura. Os comentaristas apontaram que, devido à intensa fragrância e quantidade do perfume, o cheiro ainda estaria presente quando Jesus foi crucificado seis dias depois. Em outras palavras, enquanto Jesus estava pregado na cruz, Ele estava exalando a fragrância do ato sacrificial de Maria, a fragrância do amor sacrificial e caro.

A casa inteira foi cheia da fragrância do amor sacrificial e caro.

Os cuidadores cristãos têm sido frequentemente chamados ao amor que sacrifica a si mesmo, aos custos de abandonar a família, confortos, casamento, sono, saúde, doações sacrificiais, e até de sacrificar suas próprias vidas para cuidar dos outros. Portanto, tanto a medicina cristã quanto a enfermagem cristã podem nos chamar ao pagamento de um preço muito alto.

Observe que o sacrifício de Maria foi totalmente voluntário e não compelido. Foi um ato espontâneo de impressionante generosidade. Foi motivado pelo amor a Cristo.

Então, qual é o frasco fechado mais precioso e mais caro em nossas vidas, em nosso coração? Estamos preparados para sacrificá-lo por amor generoso e caro por Cristo? Nossa tendência natural é agarrar, nos apegar às coisas mais preciosas. Mas o caminho da frutificação é voluntariamente abrir nossa mão e liberar essas coisas preciosas que seguramos com tanta força.

“se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas se morrer, dará muito fruto.”2

Como o mártir do século XX, Jim Elliott, disse: “Ele não é bobo, que dá o que não pode guardar para ganhar o que não pode perder.”

Estou muito consciente de que muito disso é teoria, e de que eu continuo a lutar para viver na realidade deste exemplo. Mas eu sei, no fundo do meu ser, que é o caminho da frutificação e o caminho da alegria. Estou certo de que Maria não lamentou o sacrifício daquele perfume. Tenho certeza que seus olhos estavam cheios de lágrimas de amor e alegria. Era para isso que o perfume servia, ungir o corpo de seu Senhor para a morte e encher a casa com a fragrância do amor.


Por John Wyatt3, professor emérito de pediatria neonatal da UCL e pesquisador sênior do Instituto Faraday de Ciência e Religião da Universidade de Cambridge.

Republicado com permissão dos CMF Blogs4.

Ouça John falando mais sobre este tópico em um recente podcast da 1st incision5 da CMF UK.

Ouça as histórias de médicos cristãos e enfermeiros que responderam a COVID-19 em nossa minissérie de podcasts vozes da linha de frente6.

Junte-se a nós às 19:00 (07 PM UTC) a cada dia para orar para os trabalhadores da linha de frente, pela nossa nação e pelo mundo enquanto lidamos com a pandemia de COVID-19 em #COVID1900Prayer 9

Tradução: Médicos de Cristo

 Referências

1. Hebreus 12:2

2. João 12:24

3. https://johnwyatt.com/2018/01/08/about/

4. https://cmfblog.org.uk/2020/03/20/christianity-in-a-time-of-plague/

5. https://www.buzzsprout.com/437878/3056704-coronavirus-and-costly-love

6. https://www.cmf.org.uk/resources/covid-19-voices-from-the-frontline-podcast/

7. https://www.cmf.org.uk/resources/covid-19-prayer/

1 Comments

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